Cooperativa de Couro no Cariri renova esperanças e traz filhos de volta ao lar

O velho ditado diz que o bom filho à casa torna. E se tem um lugar onde essa frase pode ser facilmente aplicada é no distrito da Ribeira, localizado na cidade de Cabaceiras, no Cariri paraibano e a 201 km de distância de João Pessoa. Sem oportunidades de trabalhos, os jovens daquele local estavam deixando suas casas e migrando para os grandes centros do país, a exemplo de Rio de Janeiro e São Paulo. Mas, uma iniciativa posta em prática no fim dos anos 90, mudou completamente esta realidade. Há pouco menos de 20 anos nascia a Arteza, a Cooperativa de Curtidores e Artesãos em Couro de Ribeira. Com ela, era plantada também uma semente que já deu muitos frutos e que hoje é exemplo em várias comunidades do Nordeste brasileiro. A Arteza hoje, além de ser referência na área, é a principal responsável pela vida da Ribeira e, por conta dela, os jovens não precisam mais deixar sua terra amada, além de ter uma boa fonte de renda: o couro.

Carlinhos – Presidente da Arteza
Foto: Rammom Monte
Tudo começou no fim dos anos 80, começo dos anos 90. Um filho, neto, bisneto e tataraneto de curtumeiro (como são chamadas as pessoas que trabalham no curtume do couro) percebeu que a profissão estava em queda e que as pessoas da comunidade não queria mais ficar em suas terras, já que faltava oportunidade de emprego. Com isto, ele começou a planejar uma maneira de fortalecer o couro novamente e devolver a identidade dos habitantes da Ribeira. O nome deste cidadão é José Carlos de Castro, mais conhecido como Carlinhos, de 62 anos.
“Em 88 comecei a trabalhar no curtume. E via que estava dando para trás. Existiam 15 famílias trabalhando com curtume na época do pai e em 88 fiz um levantamento e só restavam seis. Porque não existia mercado. E no artesanato eram 12 e restavam cinco. Eu já tinha feito um curso e voltei para a universidade para me capacitar mais e ao voltar comecei um movimento. E percebi muita distância das pessoas, porque o individualismo reinava. Então eu me aquietei e comecei a aplicar aquilo que eu aprendi no meu material da família. Então comecei a melhorar o produto e as pessoas começaram a observar aquilo.Então começaram a se chegar. Comecei a arrebanhar o grupo e a coisa começou a melhorar. Foi quando comecei a procurar parcerias”, explica.
Com a confiança dos curtumeiros, Carlinhos começou a empreitada que anos depois viria a ser uma referência no Brasil. Foi então que começou a busca por parceiros para pôr em prática a ideia de criar uma associação (que só mais tarde seria percebido que na verdade se tratava de uma cooperativa). O primeiro a ‘comprar a ideia’ foi o prefeito de Cabaceiras na época. Em seguida veio o governo do Estado, através da já extinta Secretaria de Indústria e Comércio. Com o tempo vieram o Sebrae e o Senai. Mas mesmo com todas estas parcerias, surgiu um problema. A técnica de curtir o couro utilizada por Carlinhos era através da casca da árvore de Angico, mas na época o Ibama não permitia que fosse cortado o Angico. E foi aí que mais uma vez a sabedoria de Carlinhos prevaleceu.
“O angico, de onde a gente tira a seiva chamada tanino, para curtir a pele, era apadrinhado pelo Ibama, que não podia se cortar o Angico. Então, em 91 e 92 eu fiz um corte-acompanhamento do angico, fotografando de 3 em 3 meses e mandei estas fotos para o Ibama. Mas o diretor do Ibama disse que era montagem, mas outra pessoa indicou para mandar para a Universidade de Patos. Aí eu autorizei mandar. E eles (a Universidade), três anos depois, mandaram uma pessoa para acompanhar isto de perto. Levei esta pessoa para Sumé, onde a mata da região é praticamente Angico. Ela passou dois anos trabalhando lá, acompanhado a evolução do Angico e mandando relatório para o Ibama de dois em dois meses. Foi aí que eles então acreditaram”, disse, para arrematar logo em seguida que o que antes seria uma associação, passaria a virar uma cooperativa.
“Quando a gente formou o grupo, com prefeitura municipal, governo do estado, através da Secretaria de Indústria e Comércio, Sebrae, Senai, Universidade de Patos e de Areia, a gente pensou em formar a associação. Convidamos algumas pessoas para participar da reunião. No dia de formar a associação veio um especialista, que era um velho conhecido meu e ele disse que a gente tinha que formar uma cooperativa, pelo fato do nosso trabalho ser de fins lucrativo. E na mesma hora a gente mudou e começou o trabalho em cima de uma cooperativa. A associação não chegou nem a existir, ela foi mudada no dia de ser formada para cooperativa”, disse.
Com todos os parceiros do lado, em 31 de julho de 1998 foi fundada a Arteza. Hoje, ela, que começou com 28 sócios, já conta com 71 associados, beneficiando mais de 300 famílias diretamente e movimenta mais de 1 milhão de reais por mês. E o sucesso veio acompanhado da volta dos filhos da Ribeira que haviam deixado seus lares para tentar sobreviver no Sudeste brasileiro.
“Hoje essa comunidade tem vida. Se este trabalho não tivesse sido incentivado para que continuasse, esta comunidade era uma comunidade morta. Se como estava decaindo lá em 88 e os jovens não queriam mais trabalhar, porque não tinha resultado financeiro. Os pais eram sacrificados. Os jovens ao completar a idade iam embora para o Sudeste ou Brasília, não ficavam mais aqui. Isto aqui estava ficando uma comunidade de aposentados. Com este vigor que a gente conseguiu colocar, com o movimento, com esta profissão em vista que estava se acabando, isto trouxe de volta para sua terra um bocado de filhos que tinham ido embora. Quando a gente começou a ganhar dinheiro aqui, os pais ligavam para os filhos e falavam para voltar porque aqui estava bem”, relatou Carlinhos.

Vinícius Miron
E um destes filhos pródigos é Paulo Ricardo de Castro, de 40 anos de vida e 23 de experiência na área. Em 2000, com a dificuldade de se manter em Cabaceiras, Paulo decidiu arriscar a vida no Rio de Janeiro. Quatro anos depois, ele decidiu retornar e hoje produz sandálias e já tem uma pequena fábrica onde emprega nove pessoas e produz cerca de 150 pares por dia.
A Arteza trouxe a gente de volta para casa. Eu diria que se não fosse a Arteza só teria funcionário publico e aposentado aqui. Não teria como os jovens permanecerem. Por falta de opção mesmo e como isto é uma cadeia produtiva acaba englobando muita coisa e o jovem fica aqui mesmo. A gente começa o ensinamento desde os 10, 12 anos, claro que após a escola. O estudo é prioridade. Mas a gente coloca já para ir pegando a profissão. As pessoas aqui respiram e vivem o couro. Se apertar, até berra.”
Cooperativa traz orgulho e sentimento de ‘pertencimento’
Além de trazer de volta para sua terra jovens que haviam deixado a Ribeira, a Arteza também evitou que alguns sequer chegassem a sair. E hoje, têm orgulho de dizer que são curtumeiros. Como é o caso de Luís Fernando, de 30 anos e com 13 de experiência. Atual diretor industrial da cooperativa, Luís foi mais um a afirmar que se não fosse esta iniciativa, o local seria atualmente só composto por aposentados.
“Se não fosse a cooperativa, aqui tinha muita pouca gente. Só aposentado. O pessoal iria embora. Desde meu bisavó fazia isto, mas era uma coisinha muito acanhada. O que eles faziam em um mês, a gente não passa um dia para fazer.Nunca morei fora,mas vários já foram, para Rio, São Paulo, Brasília. Desde que eu estou trabalhando aqui, nunca pensei em sair. Graças a Arteza eu estou no meu lugar e sobrevivendo.Eu tenho orgulho do que faço. Se alguém perguntar o que eu faço eu digo que trabalho com couro. A gente cresceu muito por conta disto. Tanto que eu, meu irmão e meu pai trabalhamos aqui. Eu sinto orgulho quando vem gente de fora ver meu trabalho”, disse emocionado.
Cooperativa produz tudo, mas cada um na sua área
Um dos segredos do sucesso da cooperativa, segundo Carlinhos, é o seu regimento interno. Na época da fundação foi feito um termo de responsabilidade onde cada associado teve que informar qual produto iria produzir e concordar que ninguém poderia fazer o que outro já estivesse fazendo. Ela afirma que com isto, é evitado que exista uma concorrência interna.
“A gente definiu que cada família iria fazer um produto. Cada família com seu produto. Lá embaixo a gente colocou que nenhum poderia fazer o produto do outro, mesmo que estivesse vendendo como água. E fez todo mundo assinar um termo de responsabilidade, para não prejudicar um ao outro. E este regimento deu certo. É tanto que eu só chamei a atenção uma vez neste período. A gente começou assim para ninguém ficar tirando a vez do outro. Para que isto aqui dentro da comunidade não se tornasse aquilo que era antes. Cada família fazendo seu produto, ganhando dinheiro e seguindo o regimento. Aqui uma das coisas que foi fundamental para este crescimento foi este regimento, com responsabilidade”, explicou.
E realmente o que não falta é variedade de produtos na Arteza. A cooperativa produz de chapéu de couro a bolsas femininas. E como manda o regimento, cada um na sua área. Como é o exemplo de Luís Eduardo, de 41 anos de idade e 29 no ramo do couro. Ele produz materiais relacionados ao vaqueiro.
“Eu trabalho na área do vaqueiro. Cada oficina direcionou uma área e eu fiquei na área do vaqueiro.A gente faz 27 produtos nesta área. Manta, couro de sela, calça… A gente tenta abastecer o Nordeste todo. Tudo tem um processo, começa a riscar, cortar, até a montagem, é um processo longo. A peça mais demorada que eu faço aqui, demora em média uma hora e meia, que é a manta. Ao todo, eu produzo em torno de 30, 40 mantas por dia. Dependendo do produto a gente faz mais. Bolsa, por exemplo, a gente faz 60. São 10 pessoas ao todo trabalhando aqui”, disse.
Outro que também tem uma produção grande é Jeremias de Almeida, de 38 anos e a 12 na área. Ele, que chegou a trabalhar na Alpargatas, em Campina Grande, atualmente trabalha com bolsas femininas. A produção gira em torno de 150 produtos por mês.
“Se não fosse a Arteza eu estaria hoje no Rio de Janeiro ou em Brasília, como é o destino de vários. Meus familiares foram para lá, conseguiram emprego e a gente ia também. Não seria mais feliz lá do que sou aqui. Eu prefiro ganhar hoje 500 reais aqui e não ganhar 3 mil lá. Por mês giro em torno de 20 mil reais”, afirmou.

Vinícius Miron
O funcionamento da cooperativa é uma espécie de roda-gigante. A Arteza recebe o produto do artesão pelo preço mínimo, coloca 4,5% em cima de lucro e vende aos comerciantes. Ao receber o dinheiro, a cooperativa repõe o valor do artesão, paga os seus custos, como folha de pessoal, burocracia e manutenção; e no começo de todo ano é feito uma assembleia para definir o que será feito com o lucro. Segundo Carlinhos, nunca foi sugerido repartir a verba entre os associados. Ele afirma que sempre foi votada a ideia de adquirir algo em prol da Arteza, como uma máquina, por exemplo.
Responsabilidade ambiental
Não é só nas áreas econômica e social que a Arteza se destaca. Graças ao conhecimento de Carlinhos, adquiridos em cursos de capacitação, a cooperativa da Ribeira também dá exemplo no quesito ambiental. Tudo isto graças ao processo de curtimento, que é de origem vegetal e não polui o meio ambiente. Nos curtumes Brasil afora, o processo usa o cromo, que é altamente prejudicial à saúde e ao meio ambiente. Já a técnica usada pela Arteza é através da casca do angico, de onde é extraída uma seiva chamada tanino, responsável por curtir o couro. Carlinhos garante que é uma prática inofensiva. Porém, isto tem seus custos. Um quilo de cromo é comprado por pouco mais de dois reais. Já o quilo da casca do angico sai por mais de oito reais.
Importância do couro na Ribeira
Para Carlinhos, o couro é o pulmão da Ribeira e sem ele e o trabalho de uns ‘dois ou três malucos’, o distrito hoje estaria bem diferente do que é.
“O couro é o pulmão daqui, a gente respira ele, come ele, faz tudo. Porque sem o couro aqui esta comunidade era morta. Esta comunidade mesmo com o movimento que existia de meus antepassados, que vinham trabalhando, passando de pai para filho, quando chegou em mim, eu não fui passar só para os meus filhos, eu comecei um trabalho para todos. Eu tenho pena de algumas comunidades que eram isso aqui, mas como não teve líder, não teve ajuda de comunidade, de político, de ninguém, fecharam. Conheço algumas regiões em RN,PE e CE que fazia a mesma coisa que a gente fazia lá trás e hoje eles não fazem mais. A mesma coisa aconteceria aqui, se não tivesse aparecido uns dois ou três malucos que colocaram isto na cabeça e não deixassem isto acabar”, relatou.
E com a persistência de Carlinhos, o amor do ‘Caririzeiro’ por sua terra e a criação da Arteza, a Ribeira hoje tem vida e as pessoas que lá habitam têm um cantinho para chamar de seu. E como quem parece que estava escrevendo para o Distrito da Ribeira, o poeta Emanuel Edson disse:
“Enquanto o mundo for mundo, nasço, cresço e morro aqui. No berço do Cariri…”
Com Portal Correio
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