Música de Jackson do Pandeiro fica 53 anos ‘perdida’
Quando a Seleção Brasileira foi campeã da Copa do Mundo pela segunda vez consecutiva, em 1962, o cantor e compositor paraibano Jackson do Pandeiro não perdeu tempo em homenagear os vencedores e lançou “Frevo do Bi”. Quatro anos depois, esperando o mesmo desempenho, o artista já preparava uma homenagem, mas a eliminação da competição na Inglaterra não só postergou o tricampeonato, como fez com que uma outra música, sem relação com o futebol, ficasse 53 anos “perdida”.
A descoberta da existência da música “Garota de Botafogo” coincidentemente aconteceu em 2019, ano em que se comemora o centenário de Jackson do Pandeiro. Jocelino Tomaz de Lima é um colecionador e pesquisador de Jackson que mora em Caiçara, a 130 quilômetros de João Pessoa. Ele preparava uma exposição itinerante do acervo dele e buscava adquirir outro disco quando fez o achado da música.
“Um dos discos que faltava na minha coleção era exatamente o primeiro registro da voz de Jackson gravado, o compacto simples de 1953 com ‘Forró do Limoeiro’ e ‘Sebastiana’. Em julho deste ano, achei o compacto à venda pela internet com um vendedor de Porto Ferreira, no interior de São Paulo, e consegui fazer a compra com ele”, explica Jocelino.
Miguel Bragioni, dono de uma coleção de vinis com mais de 120 mil unidades no acervo, contou que depois de finalizar a venda, mostrou para Jocelino outros discos de Jackson que estavam à venda, porém sem anúncio na internet. De cara, o colecionador paraibano compreendeu que estava diante de algo incomum.
“Quando me deparei com o disco com esse nome, ‘Garota de Botafogo’, estranhei logo de cara. Eu não sei ‘de cor’ os nomes das mais de 430 músicas de Jackson, mas como esse nome lembra o clássico ‘Garota de Ipanema’, seria fácil de se recordar a existência desta composição no repertório de Jackson”, conta Tomaz. Ouça um trecho da música no vídeo abaixo.
Jackson do Pandeiro – Garota de Botafogo
Para se certificar de que a canção realmente era uma música ‘perdida’ de Jackson, Jocelino buscou fontes bibliográficas sobre a história e a obra do cantor paraibano. Além da internet, o colecionador buscou informações sobre “Garota de Botafogo” no livro “A Musicalidade de Jackson do Pandeiro”, de Inaldo Soares, e em “Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo”, de Antônio Vicente e Fernando Moura. Em todo lugar, Jocelino só encontrou a mesma resposta: nenhuma citação sobre a música.
“Pedi para o vendedor me mandar um áudio com a música e não só eu como também os autores Inaldo Soares e Fernando Moura confirmamos que era, de fato, a voz de Jackson e uma música ‘inédita’. Não perdi tempo, comprei o disco e assim tivemos acesso a uma canção esquecida por 53 anos”, comenta Jocelino Tomaz.
A descoberta foi feita no ano do centenário, mas poderia ter acontecido há uma década. “Eu comprei esse compacto em um sebo de Ribeirão Preto, há uns 10 anos. Sempre fui ‘garimpeiro’ – identificava um disco que não tinha no acervo e, estando com o valor acessível, comprava. Eu sabia que esse compacto de Jackson era incomum e comprei”, comenta Miguel Bragioni, que repassou o bolachão para o colecionador paraibano por R$ 90.
A primeira exibição pública da faixa na Paraíba foi no dia 25 de julho de 2019, durante a programação de abertura do Festival de Artes Jackson do Pandeiro, em João Pessoa. Na mesma ocasião, Jocelino lançou o folheto “100 fatos dos 100 anos de Jackson do Pandeiro”. Veja a letra da música no final da reportagem.
Identificação do ano de lançamento
O disco que contém “Garota de Botafogo” é no formato compacto simples, de 33 ⅓ rotações por minuto (RPM), com duas faixas, sendo uma de cada lado. No lado A, está a faixa “Frevo do Tri”, também de Jackson. Já a composição ‘perdida’ aparece no lado B. O vinil contém o selo fonográfico da Continental, da então gravadora Gravações Elétricas S.A., porém não há nenhuma marca indicando o ano de gravação.
“De cara, duas coisas me chamaram a atenção para a possível data de lançamento do disco. Uma foi o design do selo fonográfico e do número de série do compacto, que pelas características azuis e brancas o colocaria entre os lançamentos de 1966; e outra foi o fato de que Jackson só passou um ano nessa gravadora”, explica o pesquisador de forró e vinil Érico Sátiro, para quem Jocelino mostrou o material.
“Garota de Botafogo” foi escrita por Álvaro Castilho – irmão de Almira Castilho, com quem Jackson foi casado entre 1955 e 1967 – e por De Castro. A mesma dupla é responsável por “Capoeira Mata Um”, música que abre o álbum “O Cabra da Peste”, lançado em 1966 e o único LP de Jackson do Pandeiro pelo selo Continental.
“Somente uma coisa não batia com a probabilidade do disco ter sido lançado em 1966. O fato de que o lado A do disco descoberto por Jocelino ter a música ‘Frevo do Tri’, que aparece em todos os registros da discografia de Jackson como sendo lançada no ano de 1970, após a Copa do Mundo conquistada pelo Brasil, em um compacto simples que tem ‘O Caneco é Nosso’, do Coral 70, como lado B”, diz Érico.
Duas hipóteses foram levantadas por Érico e Jocelino. Ou o disco “Frevo do Tri/Garota de Botafogo” foi lançado em 1970 como uma versão alternativa a “Frevo do Tri/O Caneco é Nosso” ou ele saiu em 1966, no ano em que o Brasil perdeu a copa. O que colocaria a faixa “Frevo do Tri” como tendo sido escrita quatro anos antes da conquista da Taça Jules Rimet pela terceira vez.
Uma vez que nenhuma biografia continha a música “Garota de Botafogo” e que todos os registros de “Frevo do Tri” eram datados de 1970, o pesquisador precisou fazer uma busca mais extensa em arquivos de jornais e até mesmo conversou com um dos diretores da gravadora na época.
Amarga derrota e vendas fracassadas
A Seleção Brasileira de Futebol, como defensora do título de 1962, se classificou automaticamente para a Copa do Mundo FIFA de 1966, sediada na Inglaterra. Mesmo entrando como favorita e com Pelé e Garrincha na escalação, o time comandado por Vicente Feola não teve um bom desempenho na competição.
Ainda na fase de grupos, a seleção venceu a Bulgária por 2 a 0, mas perdeu para a Hungria por 3 a 1 e foi eliminada após uma nova derrota, também de 3 a 1, em um jogo contra Portugal, em 19 de julho de 1966. O Brasil acumulou apenas dois pontos e ficou em 11º na classificação final, frustrando o sonho do tricampeonato.
Um artigo publicado no Jornal do Brasil no dia 20 de julho de 1966, o dia seguinte à amarga derrota para Portugal, mostrou a repercussão da eliminação da seleção com os torcedores e também com os lojistas.
“Várias agências de publicidade já estão cancelando anúncios com base no clima da Copa do Mundo, as gravadoras suspenderam a prensagem de discos sôbre os jogos do Brasil e o comércio não sabe o que fazer com mais de vinte mil canarinhos tri, de plástico, estocados para venda na fase final da campanha em Londres”, diz o texto de uma reportagem de repercussão da partida intitulada “Paulistas sofrem e pensam numa crise”, diz o texto.
Em outro trecho, com um intertítulo de “A Mudança”, o jornal repercute o que poderia acontecer com as gravadoras, em particular. O texto erroneamente cita “Trevo do Tri”, ao invés de “Frevo do Tri”.
“A indústria de discos deverá ser bastante afetada pelo fracasso da seleção brasileira. A Continental havia planejado um grande lançamento para o disco Trevo do Tri, de Jackson do Pandeiro. A RCA Victor preparou duas fitas sôbre os jogos do Brasil para gravação em long-play e a RGE já tinha capa pronta para um disco sôbre o tricampeonato”, relata o artigo.
Com essas informações, Érico Sátiro encontrou a resposta para uma das perguntas. “Frevo do Tri” definitivamente havia sido planejada e escrita para o ano de 1966. Mas ainda faltava saber se ela chegou a ser lançada no ano da derrota ou só em 1970, com outro lado B que não “Garota de Botafogo”.
“Tudo ficou esclarecido depois que consegui conversar, por e-mail, com Baggio ‘Braz’ Baccarin, que foi diretor artístico do selo Chantecler, que também era da Gravações Elétricas S.A., assim como a Continental”, explica Érico.
O diretor confirmou que o disco chegou a ser comercializado, mesmo com a derrota do Brasil, pois havia a música “Garota de Botafogo” para ser explorada. Porém, como especulou o Jornal do Brasil, a eliminação da Seleção Brasileira fez com que o público perdesse o interesse por qualquer coisa relacionada à Copa do Mundo naquele ano e o disco foi um fracasso de vendas.
Conforme Braz Baccarin explicou ao pesquisador, por causa das baixas vendas, os discos encalhados foram recolhidos e a gravação foi retirada do catálogo da gravadora, tendo apenas um lote sendo colocado à venda. “Esse é o motivo dessa raridade do disco”, pontua o ex-diretor no e-mail.
“Fiquei feliz em fazer a descoberta justamente no ano do centenário. Não só é a divulgação de uma música que há mais de 50 anos ficou esquecida do público, como também a pesquisa sobre ela mudou o curso da história da composição ‘Frevo do Tri’. Com certeza é algo para se comemorar”, completa o colecionador – e agora dono de uma raridade – Jocelino Tomaz.
A Continental relançou “Frevo do Tri” com a enfim conquista da taça em 1970, no México. Antes disso, em 1967, Jackson do Pandeiro ainda deixou registrada a revolta com o resultado da Copa do Mundo de 1966 criticando a vitória da Inglaterra na música “A Taça Era Dela”, a última do disco “A Brasa do Norte”. Ouça a música “Garota de Botafogo” na íntegra no vídeo abaixo.
Letra de “Garota de Botafogo”
Composição: Álvaro Castilho e De Castro
Intérprete: Jackson do Pandeiro
Lá em Botafogo tem uma garota
Que tá quase louca só fala em casar
E só namora no canto do muro
Num lugar escuro pra ninguém olhar
Gosta de cinema, rádio e futebol
Na roda do samba ela é a maior
Sai acompanhada mas só volta só
Diz que tem 20 anos e não é de menor
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