Estouro da inflação em 2024 reforça alerta para riscos do descontrole fiscal
- 10 de janeiro de 2025
Recém-empossado presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo terá como uma de suas primeiras tarefas à frente da instituição o envio de uma carta nada agradável a Fernando Haddad, seu ex-chefe no Ministério da Fazenda. Do alto de uma taxa básica de juros de 12,25% ao ano, uma das mais altas do mundo, o economista terá de explicar os motivos que levaram a inflação a ter estourado o teto da meta estabelecida para 2024. Galípolo prestará os esclarecimentos porque é o novo comandante da política monetária, o braço que cuida oficialmente do índice de preços e dos juros do país. Entre especialistas e investidores, contudo, os dedos estão apontados para o outro lado, o da política fiscal capitaneada por Haddad e submetida aos desejos do presidente Lula, e que vem sendo marcada por um contínuo aumento dos gastos e da dívida pública.
O resultado de 2024 do Índice de Preços ao Consumidor Amplo, o indicador oficial de inflação do país, seria divulgado na sexta-feira 10, depois do fechamento desta reportagem. Independentemente do número exato, o IPCA extrapolou o limite anual determinado pelo Comitê Monetário Nacional. A inflação veio mais alta do que se esperava no início do ano, está bem longe da meta atual de 3% e acima, ressalve-se, do teto de 4,5% da banda de tolerância na qual deveria oscilar. Essa espécie de margem de erro existe para comportar choques eventuais, e a carta aberta a ser escrita pelo presidente do Banco Central ao ministro da Fazenda é uma formalidade prevista apenas para as vezes em que a inflação termina o ano descumprindo a banda de tolerância. A ideia original é que esses eventos sejam exceção — mas, no Brasil, são incomodamente presentes. “Temos um Estado que gasta muito e governos que querem fazer a economia crescer a qualquer custo, uma das principais razões para passarmos tanto tempo sem a inflação estabilizada”, diz Heron do Carmo, professor de economia da Universidade de São Paulo e que coordenou os índices de preços da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas por mais de duas décadas. “Se tivéssemos uma situação fiscal mais organizada e visando o longo prazo, seria mais fácil termos inflação e juros mais baixos, com investimentos e crescimento maiores.”
Com o estouro do teto em 2024 completa-se o oitavo ano em que a inflação desrespeita os limites desde que o regime de metas foi implementado no Brasil, em 1999, quando Arminio Fraga assumiu o BC, durante a Presidência de Fernando Henrique Cardoso, com a missão de substituir o falido sistema de câmbio fixo. Desses oito anos, em sete o erro foi para cima — 2001, 2002, 2003, 2015, 2021 e 2022, além de 2024. E 2025 já começa candidato a se juntar à lista, pois as expectativas preliminares dos economistas são de que o IPCA suba ainda mais e passe dos 5% até o fim do ano, pressionado por uma demanda persistentemente aquecida e pela disparada recente do dólar para a faixa dos 6 reais. A única vez em que o furo da inflação brasileira foi no piso e não no teto ocorreu em 2017, mesmo ano em que entrou em funcionamento o falecido teto de gastos, congelando o crescimento das despesas públicas em termos reais.
A partir de 2025, passará a valer a chamada “meta contínua”, a primeira grande mudança no regime de alvos para a inflação em seus 26 anos de existência. Com a nova metodologia, a meta passa a ser considerada descumprida sempre que o índice de preços ficar fora das margens de tolerância por mais de seis meses seguidos, similar ao que ocorre em vários países. Até então, no Brasil só se cobrava a inflação dentro dos limites do alvo ao fim de cada ano, em dezembro. Ainda não se sabe qual será o efeito disso para o controle da inflação. De toda maneira, mesmo se as metas contínuas sempre tivessem valido, o Brasil teria sido igualmente reprovado. Um levantamento feito por VEJA identificou que, dos 307 meses de vida do regime de metas até aqui, em 133 o IPCA ficou rodando acima do teto vigente. É o equivalente a um terço do período com a inflação mais alta do que o tolerável. Nos meses restantes, em boa parte do tempo o índice ficou mais perto do limite superior do que do centro da meta.
Ser um país com dificuldades crônicas no campo da inflação traz graves consequências. Elas afetam não só a economia, que se torna refém de juros altos e de ciclos de crescimento de fôlego curto, mas também as empresas e os cidadãos, sempre as vítimas mais imediatas dos incômodos causados por preços altos demais. “Já sentimos os custos maiores e não temos como não repassar esse aumento para os preços agora”, diz Rodrigo Garcia, diretor da Kidy, fabricante de calçados infantis de Birigui (SP). Ele conta que as vendas foram bem no ano passado porque a empresa se esforçou para segurar esse repasse, mas, agora, com muitos de seus insumos importados encarecendo com o dólar, não será mais possível evitar o reajuste. “A impressão é de que as nossas receitas pararam no tempo e as despesas continuaram aumentando”, afirma Camila Brandão de Souza, 36, que tem uma hamburgueria em Paraisópolis, comunidade da Zona Sul de São Paulo. O aluguel subiu, as contas de luz e de internet aumentaram e as compras no supermercado estão bem mais caras, diz ela. “Mas eu não consigo repassar tudo para os clientes, então o jeito é cortar gasto.” O resultado é que, caso não seja controlada, a inflação, no mais das vezes gerada onde a renda e o consumo estão aquecidos, acaba crescendo e corroendo a mesma renda e o consumo que a alimentaram.
Não à toa, em todas as vezes em que os períodos de inflação fora do teto se prolongaram, o Brasil teve troca de poder na Presidência. Lula foi eleito para substituir FHC em outubro de 2002, quando a alta de preços já estava há dezesseis meses rodando entre 6% e 7%, e Dilma Rousseff foi defenestrada, em agosto de 2016, após uma impressionante sucessão de quase 25 meses de inflação estourando o limite da banda. Jair Bolsonaro, presidente durante a pandemia e o choque global de preços que ela causou, perdeu a reeleição para Lula em 2022 quando o IPCA completava, em outubro, o vigésimo mês consecutivo acima da meta. “O Brasil tem uma persistência de descontrole de preços ainda alta, ligada ao nosso passado hiperinflacionário, à baixa produtividade e à questão fiscal”, diz o economista-chefe da gestora Equador Investimentos, Eduardo Velho.
Essa persistência é calculável e, nas contas de Velho, está próxima dos 4,7% atualmente. Representa uma espécie de piso estrutural da inflação do país e um valor abaixo do qual fica difícil derrubá-la sem que haja mudanças na maneira como a economia funciona. Trata-se de um piso alto comparado à meta de 3% que o Brasil se propôs a perseguir e que precisará ser melhorado caso ainda queira convergir para os níveis observados em pares emergentes. No Chile e no Peru, as metas de inflação são, respectivamente, 3% e 2%, e eram razoavelmente cumpridas até a pandemia sem precisar de juros a dois dígitos como os que o Brasil quase sempre ostenta.
O núcleo do problema, e, portanto, a chave para a solução, passa, de acordo com os especialistas, por redimensionar o tamanho dos gastos públicos, que por natureza já são um gerador de estímulos ao consumo e à inflação. Como, por aqui, tanto os gastos quanto a dívida pública são historicamente elevados na comparação com os demais emergentes, e estão crescendo rapidamente, esse fardo fiscal tem servido, também, para aumentar a desconfiança dos investidores. Isso se materializa em saída de capitais, dólar subindo e, de novo, inflação ficando mais alta. “A história mostra que o Brasil não precisa conviver com inflação elevada”, afirma Henrique Meirelles, mencionando os anos em que presidiu o Banco Central, nos dois primeiros governos de Lula (2003-2010), e que chefiou o Ministério da Fazenda, com Michel Temer (2016-2018).
Quando esteve no BC com Lula, houve um esforço do governo para manter as contas no azul por todo o período, o oposto do que se dá hoje. Na segunda passagem, com Temer, foram feitas as primeiras grandes reformas, como o teto de gastos e a trabalhista. Em ambas, Meirelles saiu com inflação e juros menores do que quando entrou. “Fizemos um rígido controle de gastos, e a política fiscal andava na mesma direção que a monetária”, diz ele. “Isso prova que, com a política fiscal controlada, é possível conter a inflação.” Enquanto o equilíbrio das contas públicas não for uma prioridade, o Brasil permanecerá preso ao ciclo de inflação alta, juros elevados e crescimento insustentável.